AcontecendoReavivando as cerimônias da Semana Santa de antigamente

Entre as solenidades litúrgicas e as crendices populares
A Comarca3 de abril de 202113 min
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A Semana Santa de 2021 transcorre sem expressões públicas da paixão, morte e ressurreição de Cristo, com celebrações a observar medidas sanitárias e de segurança e sem encontros que expressam a alegria pascal. Pelo segundo ano seguido o mundo vive no contexto de pandemia. Contudo, no passado a religiosidade marcava o período e algumas lembranças podem ser significativas no tempo presente.

Ricas em símbolos, cores litúrgicas e manifestações populares, as celebrações da Semana Santa marcaram originalmente a cultura avareense arraigada pela tradição católica. Perdem-se nas brumas do tempo e no passado das memórias, as profundas expressões de fé dos moradores da Vila do Rio Novo, que ganhavam especial relevo durante os rituais do ciclo litúrgico em que os católicos celebram a sua maior festa: a da ressurreição de Jesus.

Por volta dos anos 1890, o cronista Jango Pires anotou como era bem organizada a procissão da Sexta-feira da Paixão. “Guiava a Paróquia de Nossa Senhora das Dores o padre Elisiário Paulino Bueno. À frente da multidão vinha o centurião romano com a matraca. A seguir, José de Arimateia e Nicodemos com sua escadinha. Depois, Isaac com o feixinho de lenha para seu sacrifício, seu pai Abraão com a espada laçada por uma fita segura pelo anjo Gabriel, São João Evangelista, as três Marias e a Verônica”, relatou.

Para esses papéis eram escolhidas belas moças que conservavam grandes cabeleiras. Na sequência, o esquife de Cristo morto era conduzido debaixo do pálio guardado por seis soldados romanos, todos vestidos com a indumentária típica. Carregavam a imagem “homens embuçados de branco”, relembrou com detalhes.

Também alguns padres participavam do cortejo acompanhados por um coro de mulheres, algumas coristas vindas de Sorocaba, parentes do maestro João Batista Itagiba, cuja banda executava, nas esquinas, marchas fúnebres para comoção dos fiéis. Engrossavam a procissão as Irmandades de Nossa Senhora das Dores, de São Benedito e do Santíssimo Sacramento, todas representadas por seus tocheiros.

Emocionado, o memorialista concluiu: “A Semana Santa era a mais perfeita. Se não era completa, foi a mais completa a que assistimos. Era uma semana cheia de domingo a domingo. Era tão perfeita que tocava no âmago e dava a impressão de que a atmosfera estava pesada, os dias se tornavam singulares, respeitosos. O traje dos fiéis, quase em geral, era preto. Todo mundo sisudo, de feição agoniada até a Aleluia”.

O Judas de Nhá Inocência e os quatro lobisomens

Nas madrugadas de Sexta-feira Santa para o Sábado de Aleluia havia algazarra na cidade. “Ninguém dormia nessas noites. As pessoas precisavam ficar vigiando para que frangos e cabritos não fossem furtados de seus quintais”, lembra Jango Pires.

Dois fatos narrados pelo memorialistase deram no fim do século dezenove. O primeiro, na Sexta-Feira Santa de 1885, teve a ver com o velho costume da malhação do boneco de Judas Iscariotes, uma vingança simbólica ao traidor de Jesus. Muito beata, Nhá Inocência, uma das pioneiras do Rio Novo, fez voto e confeccionava um Judas e o colocava na frente de sua casa, na Travessa da Liberdade (hoje, Rua Rio de Janeiro). Mas os seus bonecos surpreendiam a criançada e, numa das vezes ela o escondeu dentro uma caixa de vespas.

A garotada se divertia esperando para espatifar o Judas de Nhá Inocência. Num ano, porém, eles é que assustaram a velhinha fazendo um boneco que tinha em sua cabeça um gato morto e com um cartão pendurado: “Cuidado que não façam a vancê, o que fizeram pra mim”.

Na Semana Santa de 1898 uma estranha notícia dizia ter a polícia prendido um lobisomem. O boato cresceu e dizia não ser um só, mas dois lobisomens. No fim, quatro bichos teriam sidodetidos a ponto de alarmar o juiz de Direito, queviu os arredores da cadeia tomados por curiosos.

O magistrado foi até lá, mandou abrir a cela e tudo veio às claras. “Era a preta Joaquina com três bonecas de pano. A mulher havia sido escrava de dona Ana Tomás. O delegado a recolhera atendendo ao pedido do vigário, padre Bicudo, que não queria a negra interrompendo as celebrações da Semana Santa, pois como de costume ela incomodava fazendo hilaridades com seus gestos e bobices”, revelou Jango. (GJ)

Cenas da Paixão de Cristo pelas ruas

 Até o fim dos anos 1950 as cerimônias da Semana Santa se concentravam na igreja de Nossa Senhora das Dores, a única sede paroquial da cidade. Os rituais começavam no Domingo de Ramos, com a bênção das palmas que precedia a procissão pelas ruas centrais.

Com acompanhamento de numerosos fiéis, no Ofício das Trevas, celebrado na Segunda-Feira Santa, eram colocados, ao lado do altar, candelabros com velas acesas, as quais iam sendo apagadas no decorrer das orações.

Já na Sexta-Feira Santa o luto era total. Os trens não apitavam e os poucos carros que circulavam pela cidade não buzinavam. Os sinos das igrejas ficavam mudos. Os senhores que usavam chapéu naquele dia deixavam-no de lado e saiam de casa com as cabeças descobertas, assim permanecendo o dia todo. Aliás, os homens nem se barbeavam naquele dia e as mulheres usavam saias e mantilhas negras, em sinal de tristeza pela morte de Cristo.

À noite, uma multidão seguia a “Procissão do Senhor Morto”. Havia paradas diante de pequenos altares montados pelos fiéis, perto dos quais a Verônica – representada pela inesquecível Cecília Tortorelli – entoava com voz grave e triste o canto latino “O Vos Omnes” e desenrolava o pano com o rosto de Cristo.

“Essas procissões – recordava-se o memorialista Joaquim Negrão – eram organizadas com critério e ordem” pelo monsenhor Celso Ferreira (1903-1998), que a tudo acompanhava com rigor, severidade e bom gosto. O povo, em fila, no máximo de duas pessoas, ia pelas calçadas, em ambos os lados.

Já entre os anos 1960 e 1980, padre Paulo Goecke (1924-1992), pároco da igreja de São Benedito, cuidou com zelo e pela piedade da preparação das cerimônias da Semana Santa. Ao abrir o tríduo pascal, na noite da Quinta-Feira Santa, ele repetia o gesto humilde Jesus que, na última ceia, lavou os pés de seus discípulos horas antes de ser preso, torturado e morto na cruz.

Na tarde da Sexta-Feira Santa o religioso alemão motivava atores amadores a encenar com respeito a Paixão de Cristo pelas ruas de sua paróquia. Por fim, no Domingo de Páscoa ele convidava os católicos para participarem da “Procissão da Ressurreição”. Desse ato religioso, ainda na madrugada, participavam pessoas humildes, a maioria vinda da roça, algumas das quais dormiam nos bancos da praça, enquanto aguardavam os sinos tocarem anunciando a alegria da ressurreição. (GJ)

Gesiel Júnior

Especial para A Comarca

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