DestaqueGeralNadir Kfouri, uma avareense símbolo da defesa da democracia

Mulher corajosa, ela é considerada patrimônio do Serviço Social no Brasil
A Comarca20 de outubro de 202010 min
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Gesiel Júnior

Especial para A Comarca

Ela era uma brasileira rara. Em Avaré ainda são poucos os que reconhecem Nadir Kfouri. Essa assistente social primaz passou para a história como a primeira no mundo a comandar uma universidade católica. E isto se deu durante a repressão militar no Brasil. Sua admirável trajetória merece, portanto, ser mais conhecida.

Em 1976, por indicação do cardeal Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo e grão-chanceler da Pontifícia Universidade Católica, ela assumiu a função de reitora da PUC. Antes, um tabu foi quebrado pelo papa Paulo VI ao dar aprovação para uma mulher no exercício do cargo, o que jamais havia ocorrido na história  do catolicismo.

A partir de então, um dos prazeres da reitora, por oito anos, era poder observar da janela de sua sala os estudantes puquianos. Solteira, considerava aqueles alunos, ao lado dos sobrinhos, seus filhos. Sua gestão enfrentou momentos importantes e difíceis vividos no contexto da ditadura. E ela defendeu corajosamente a PUC diante das arbitrariedades do governo militar abrindo suas portas para intelectuais perseguidos, entre os quais Paulo Freire e Florestan Fernandes. Também iniciou a reconstrução do TUCA (o teatro da universidade), alvo de incêndios criminosos em 1984.

Antes, em 1977, durante o episódio da violenta invasão da PUC pela Polícia Militar, a educadora avareense mostrou com dignidade a sua indignação ao deixar o truculento coronel Erasmo Dias, entāo secretário estadual da Segurança Pública, com a mão suspensa no ar. Mulher de fibra, virou-lhe as costas enquanto exclamava: “Nāo dou a mão a assassinos!”.

Três anos depois, dona Nadir, como era carinhosamente tratada, tornou-se a primeira reitora escolhida em eleições diretas, após receber 7.058 votos de professores, alunos e funcionários.Como gestora democrática, ciente de suas responsabilidades, respeitou as diferentes opiniões e propostas, caminhou orientada pela justiça na busca de uma universidade autônoma comprometida com seu tempo. Exerceu o cargo até se aposentar, em 1984.

Para a universidade brasileira, para a comunidade puquiana e para o Serviço Social do Brasil, a herança de Nadir Kfouri está expressa, entre múltiplas conquistas, na construção da primeira pós-graduação em Serviço Social no país.

De Comissão da Verdade da PUC-SP “Reitora Nadir Gouvêa Kfouri” recentemente foi chamado o órgão destinado a levantar os principais episódios e processos ocorridos no meio universitário no período da ditadura civil-militar (1964-1988). Tal gesto significativo honrou a primeira reitora, no Brasil, indicada pelo voto direto da comunidade acadêmica, assim como a primeira mulher reitora de uma universidade no país e de uma universidade católica no mundo.

Com efeito, o resgate da obra memorável de Nadir Kfouri torna vivos não só a sua presença, como também a sua opção, sem tréguas, por uma pedagogia democrática e emancipadora.

Sobre a primeira mulher na história a ser reitora de uma universidade católica

Mais velha de seis irmãos, Nadir Gouvêa Kfouri nasceu em Avaré no dia 19 de dezembro de 1913. Foi alfabetizada no 1º Grupo Escolar (atual Escola Matilde Vieira) e também estudou no Instituto de Educação Cardoso de Almeida, em Botucatu. Mudou-se com a família para a capital quando tinha 14 anos.

“Meu pai, comerciante de origem libanesa, foi um homem trabalhador que ganhava bem”, mas, com uma tão grande prole, precisou contar com o apoio dos filhos. Com Sebastião Kfouri ela aprendeu o amor pelos livros, tanto que admitia: “Quando estou lendo sou uma excelente companhia para mim mesma, me distraio muito, gosto de ler”. Hoje a biblioteca do campus Perdizes da PUC-SP leva o seu nome.

Toda a formação dessa avareense estudiosa transcorreu em estabelecimentos públicos, como a Escola Caetano de Campos e o Instituto de Educação da Universidade de São Paulo, onde aperfeiçoou-se pedagogicamente.

Ao ingressar na Ação Católica sentiu-se inflamada por uma sede de justiça que a envolveu por toda a vida, lhe marcou os passos e a motivou a escolher cursar Serviço Social na primeira escola brasileira. Ao graduar-se em 1938, apresentou como trabalho de conclusão uma análise sobre os educandários paulistanos, onde apontou o absurdo de uma disciplina rígida, numa total ausência de relacionamento pedagógico com as crianças e adolescentes.

A partir de 1940 a professora Nadir começou sua carreira na Escola de Serviço Social, então agregada à PUC-SP, onde tornou-se vice-diretora em 1947 e assumiu a direção em 1951. Antes, por breve período estudou nos Estados Unidos como bolsista de pós-graduação na National Catholic School of Social Service, em Washington. Foi também diretora e assistente social da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e da Secretaria do Bem-Estar Social da Prefeitura de São Paulo.

Dona Nadir formou gerações de assistentes sociais, deu cursos em todo o Brasil e em países da América do Sul. Como perita das Nações Unidas, deu aulas em escolas sediadas em Madri e Barcelona, na Espanha. Após aposentar-se da PUC-SP, onde sua figura é um ícone, ela vivia recolhida. “Era brava, enérgica e, ao mesmo tempo engraçada”, revelou o comentarista esportivo, Juca Kfouri, seu sobrinho.

A célebre educadora faleceu em 13 de setembro de 2011, aos 97 anos, em decorrência de uma pneumonia. Deixou, em seu testamento, o apartamento no qual morava no bairro Itaim Bibi, em São Paulo, para o filho da empregada que dela cuidou até os últimos dias. (GJ)

 

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